sábado, 30 de agosto de 2008

Dia, mais um dia

Dia, mais um dia

Acordo melancólica. Uma pitada de angústia me incomoda. Espreguiço. - Quê que é isso, meu Deus?! Desfilo indagações de auto-análise fajuta. É a filha que saiu ontem sem me dar um único beijo? É o filho que não me telefonou ontem à noite? É o marido que não para de trabalhar?
Acho que não dá resultado esmiuçar razões logo de manhã, ainda esforçando-me para abrir os olhos..
Voz forte de homem chamando : - Já são oito e meia. Tá na hora.
Hora de quê, afinal? E tome de novas considerações. Hora de iniciar o quotidiano medíocre dos aposentados: levantar, mudar de roupa, dar ordens à empregada, ver o que falta e o que enguiçou na casa...?
Dou um bom-dia enviesado aos da sala e da cozinha, olhos ardidos pelos restos de sono. Nó na garganta, por que?
Não sou de acordar muito tarde, mas gosto de dormir até à hora que bem cismo, uma vez aposentada, sem horário rígido para as tarefas do dia. Acho que é a única coisa que vale a aposentadoria. E “a hora que bem cismo” não a deixam chegar. Por que? Será que amanheço digna de se ver, bonita como os passarinhos que ainda chilreiam em meu bairro, em destemor do trânsito?
Nem passa pela cabeça do homem absorto a possibilidade de desejo de ter minha companhia na sala. Parece longínqua a memória dos primeiros encontros. Conseguiram tirar-me a veia de donzela romântica. Marília, Annabel-Lee, Ofélia, Julieta e quantas mais, enterradas por mim, sem poema
Vou ao banheiro. Constato no espelho defeitos suspeitados: cara meio inchada, meio murcha, olheiras escuras embaixo de olhos que, por sua vez, esquecem-se de se amendoar, como na juventude.
– Por que adiar mais a plástica indispensável, covarde criatura?!
O cabelo me irrita: fino, mal educado, despenteado, sem propósito algum, pede revigoramento e tintura mais uma vez.
O corpo... Bem, até que não está mal para uma velhota da minha estigmatizada faixa etária. Fruto invejado de ginástica a vida toda. Iniciada desde os dezoito anos, perseguida em todas as formas: malhação com peso, movimentos de alongamento e torções, ginástica-dança ou o contrário, hidro...
- Também, minha filha, com isso tudo, até eu – dizem-me as preguiçosas.
Ainda noto indícios de cintura marcada, ombros quase retos, um quase nada de corcunda, barriga decente porque pequena, bunda sustentada..
Mas, e adeus com a mão?! Será que posso dá-lo à vontade, sem carne frouxa interna a balançar nos braços? E as coxas? Sempre grossas e celulitosas, estarão em forma para a bermuda de linho branco, que me aguçou o desejo na vitrine? Só se for bermudão largo e comprido. De preferência, preto. Não ouso mais. Nada de joelho imperfeito à mostra.
Na sala, óculos a postos, os eternos jornais. Notícias da TV de ontem, esmiuçadas sem grandes cuidados, uma ou outra matéria, rápidos artigos transbordantes dos mesmos comentários de sempre e alguma crônica legal. Pronto. Estão lidos. Posso descer e dedicar-me à piscina – única tarefa obrigatória do dia.
Com delicadeza de massagista embusteiro, passo bloqueador solar número 30, recém receitado por nova dermatologista.
- Põe bastante. Sem pena de gastar. Se pouco, não faz efeito -, diz ela.
Eu obedeço. Fartas porções espalhadas meia-hora antes de descer. Devia ser uma hora contada, segundo regras mais rígidas. Mas a impaciência de sair e arejar é muita.
Na piscina, a festa das crianças e o meu alívio. Se não fosse projeto social da TV Globo, diria criança-esperança, pura verdade. A filha da vizinha, de dois anos, cai nos meus braços úmidos e me sorri. Aceito e babo. Vejo avós cuidando de netos mais velhos. Taí uma ótima ocupação. Por que não tenho netos, Senhor?
Planos de trabalho ponteiam meu banho-inspiração, entre um e outro contar de braçadas e pernadas. Quero escrever um romance. Escritora que se preza escreve, pelo menos, contos longos, novelas e, quiçá, um romance. Eu, até hoje, limito-me a três páginas. Quatro, lá por uma extravagância. São apelidadas de crônicas e só. Só!? Gente, e Raquel de Queiroz, e Rubem Braga, e Antonio Maria, e Stanislaw Ponte Preta... não foram excelentes cronistas?
Insisto no romance. Dizem que as editoras publicam mais depressa. Logo que engulo meu almoço hipocalórico, desço para a livraria mais a mão. De fato. Há fartura de romances. A grande maioria, tradução do inglês. Um ou outro, de nacionalidades da moda: árabe, africano...Best-sellers aos montes, e recomendados.
Entro e procuro o novo. Traduções, sempre traduções: o que vem de países ricos ou esdrúxulos será melhor do que o genuíno nosso? Fico fula. Além do mais, o preço dos livros não apraz a meu bolso.
Tomo um cafezinho nos fundos da loja, olhos e ouvidos atentos aos freqüentadores. Ninguém compra nada. Nem revista literária. Batem papo ou lêem seu jornal de hábito: Segundo Caderno.
Alguns jovens discutem, em redor da mesa, o tema da aula da faculdade. Parece filosofia. Quem me dera meus tempos de universidade tivessem um café!
Volto ao lar nada doce porque, solitário. Guarda uma aposentada professora, agora escritora. Passo o dia a bolar escritos, idéias amontoadas na cabeça. Releio os textos de dias atrás, respondo os e-mails mais interessantes, não os pornográficos ou de auto-ajuda. Leio textos no computador, um ou outro poema ou trecho de autor de respeito em papel. Descubro que há gente com desprezo ao uso de citações. Fico desanimada, pois sempre gostei delas e as coleciono em meus cadernos de anotações. Além de usá-las em todos os muitos cartões de aniversário, de Natal, de casamento.
O telefone toca e me faz mal. Se não toca, fico pior. Um dia, mais um dia, até o marido chegar.
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Maia Lindgren

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Lento..., extrato de poema de Natercia Freire

" Estou no fundo ou estou nos cimos?
Estou morta ou estou a sonhar?
Tenho as mãos presas nos limos
ou molhadas de luar"


Boas-vindas

Minha gente querida
Agradeço muito a visita a meu vício mais atual de escrever.
Que gostem e me perdoem os errinhos. Sou uma velha novata.
Maria Lindgren