terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Belas Mortes

Belas mortes
A morte tem sido retratada nas artes da pior maneira possível. Hora, um cavalheiro de olhar maligno, joga xadrez com outro, nitidamente para o derrotar e matar, no momento em que julgar adequado: Ingmar Bergman e seu cinema belo-terrível.
Outras vezes, uma espada enfiada em direção errada e lá se vai Polônio, pai de Ofélia, um homem bom, no meio de tanto cafageste – Hamlet, de Shakespeare. Ou um veneno colocado em copo errado – também no Hamlet, no teatro de Shakespeare.
Ou em pinturas antigas e modernas. A Guernica, de Picasso representa muito bem a violência da guerra na Espanha do início do século XX, com os pedaços de gente a voar pelo espaço. Morte brutal, pois. Nem precisa tanto. Basta assistir às notícias da Síria, do Líbano hoje, do Afeganistão e do Iraque ontem, para ver morte por todo lado. Nas cidades grandes, as guerras do tráfico e do trânsito aniquilam até mesmo crianças.
Mas, como é difícil ao ser humano aceitar a inevitável conclusão da vida! Verdade é que o fim da vida é tabu para a maioria dos seres humanos, religiosos ou não, salvo as exceções mais fanáticas,  que se sentem vivos de cabeça, tronco e membros e a morte não lhes passa pela cabeça. Ou os homens-bombas, que terão Alá a recebe-los no paraíso –será?-  novidade dos islamitas de hoje.  E mesmo os tronchos de doença não querem sair do que lhes é familiar para o total desconhecido. Preferem andar de cadeira de rodas ou nunca sair de casa. Deixar este mundo por vontade própria somente os deprimidos sem cura.
Claro que há os heroís verdadeiros que se arriscam a morrer para salvar os outros. Vide os bombeiros, que fazem disto profissão, que horror!
Dentre as mortes que viví, a do meu tio mais bonito foi uma das mais terríveis: atropelado, quando saía de uma festa, aos cinquenta anos. A da amiga muito próxima, que me deixou uma trava eterna na garganta, assolada por câncer generalizado, em uma semana de descoberta. Barra pesadíssima.
Conheci uma única pessoa que, cansado de sofrer ou por acreditar num Deus à sua espera, disse, de repente, aos que lhe cercavam a cama de moribundo sofredor, já com mais de setenta anos: - Chega! Fechou os olhos, decidiu recebr a temida e pronto!
Há, no entanto, um jeito de morrer que eu trato de nunca esquecer, por suave e merecido: o de minha mãe. O neto andava adoentado e a visitava todos os dias, sem falta. Precisava de seu carinho mais que de comida ou medicamento. Ao rapaz não lhe importavam a quase cegueira, a mudez de pequenos gemidos, sem palavra articulada, a pele ressecada e flácida, o ligeiro tremor das mãos. Sentava-se a seu lado no sofá da sala acanhada, ele grandalhão bonito; ela,  idosa encarquilhada de oitenta e nove anos, ainda com raros resquícios da beleza de outrora: as pernas, por exemplo.
 A televisão com qualquer imbecilidade era prêmio, porque pretexto para o casal passar horas e horas de mãos dadas, namorados platônicos, alimentados pelo amor recíproco. O enlevo só se interrompia para a papinha dela e o sanduiche dele.  Tarde de chuva de verão não os amedrontava, ainda que o barulho forte dos trovões assustassem um pouco, fazendo mais agarradas as mãos. Curavam-se ambos pelo carinho recíproco.
Uma bela tarde, a vovó do rapaz engoliu sem mastigar a papinha de sempre, sentou-se no sofá com o neto, televisão ligada. Não se deram as mãos. De repente, sem um ruído, ela pendeu a cabeça para o lado dele mais que o comum. Apoiou-se no ombro do neto, estática. Era ela, a morte, não pressentida pelo neto. Sem gemer, nem tremer, calma, minha mãe consentiu em deixar este mundo, Como um passarinho. Ai, quem me dera!
Maria Lindgren

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Textos quase esquecidos

Esqueci de postar meus textos de Natal - Repetição desigual e de Ano-Novo - Ano-Novo, meu Deus

Aí vão meio atrasados. Sorry! Maria Lindgren

Repetição desigual
           
De repente, estou muito só, mas muito mesmo. O velho nó no estômago começa a  apertar de modo inusitado. Como um alicate delicado, mas fiel à sua função. Decido, pela milésima vez, ir a um psiquiatra. Não é possíbel repetir sensações nauseabundas todos os anos de uma vida longa. Há que experimentar mudanças sempre, coisa que, cada vez mais, desanimo de levar adiante. Claro que, na minha idade, nada pode ser “para melhor” - penso, com meu realismo de quem leu e sentiu muito Fernando Pessoa.
Chega uma amiga sem aviso - raridade nos tempos atuais. É vizinha e nunca havia entrado no meu escritório. Convido-a a conhecer tudo e ela para diante das fotos, que exibo com o maior orgulho: meu filho com três anos, seu cabelo e sorriso inimitáveis, o mesmo filho muito mais velho, agora com a filha, minha sogra e meu marido - essa mania de ser a fotógrafa sempre me exclui em dia de festança, Darcy Ribeiro de braços abertos à vida e os dizeres que o tocaram sempre para frente “ Depende de nós”, eterno exemplo para os desanimados e, finalmente, mamãe e papai, lindos nos seus quarenta anos, a se olharem com amor.
Que ideia esta de cavucar fotos íntimas perto do Natal! E para uma sehora que nunca conviveu comigo antes deste apart de hoje. Como pode ela entender a dor da única foto que eu não queria comentar e acabei por faze-lo: a da amiga de braço dado comigo, que morreu cedo de câncer.
Faço uma baita força para não dar vexame e tiro a vizinha para a sala, quase a empurrá-la, ela que é a única a procurar me ver e agradar. Ingrata, penso que devia ir mais à cobertura onde ela mora, mas nunca obedeço direito aos ditames das obrigações, com todo o meu catolicismo.
Volto à solidão e a dar uma olhada no casal “culpado” de meu nascimento. Lembro-me da estúpida diferença de meus Natais, conforme as mudanças de vida.
Primeiro, a árvore de Natal pouco importava, Jesus na manjedoura, sim. Relembro os presentes inúmeros, a mesona do almoço (meu pai celebrava  o Domingo de Páscoa), os convivas, inclusive um ou outro padre,  impecavelmente vestidos todos, inclusive a mesa de linho branco, a louça portuguesa Vista Alegre, os cristais, a prataria... Nada de guardanapos de papel. Meu pai à cabeceira, minha mãe à direita e o resto que se espalhasse. Meu Deus, que saudade! Por ultimo, o brinde com vinho do Porto do norte português.
Depois, a celebração com os filhos ainda crianças, um calorão dos infernos que nos obrigou a ficar quase pelados, elegâncias jogadas no lixo, mas uma alegria total. Tantos presentes que o baú do quarto infantil teve que ser esvaziado para que nele coubessem os novos brinquedos. Gritos e risos até à hora de dormir.
E ainda, os Natais de muita dificuldade posta de lado, depois da saída do primeiro marido, celebrado com gente amiga, jovens que não tinham “Programa de Natal” nas famílias, talvez por serem de outras cidades longínquas ou outras religiões. Vinho tinto, cerveja, cada um trouxe um petisco, felicidade a ocupar assentos e assoalho do salão, junto com meus filhos, por certo. Nada de presentes: todo o mundo duro. Isto à noite, entrando pela madrugada adentro. No dia seguinte, simplicidade e boa comida no almoço dos avós de meus filhos.
Casamentos, separações, formaturas, mortes... e o Natal minguou junto com a redução da familia. Ainda se tenta um bacalhauzinho de nada, um presunto ou chester de forno, umas castanhas, umas rabanadas, uma ou outra fruta... Tudo diet.
Verdade que, até uns dois anos atrás, as tentativas de retomada da celebração continuaram, numa ou noutra casa. Quase sempre na mais espaçosa. Cada vez com menos presentes e um calorão “da gota”, como diz uma de minhas amigas mais conservadoras  de adjetivos e expressões das antigas.
Se não fosse o nosso coral do Colégio Santo Agostinho, que me ajuda a saborear  a vida e recorda as canções natalinas antigas (porque novas não as há)  em geral herdadas dos protestantes norte-americanos, e a minha Igreja de Santa Mônica, que não deixa de aclamar com presépios e flores o nascimento de Jesus Cristo, a esperança dos homens de fé, eu me internava em lugarejo sem religião ou misticismo e... chorava.

 Ano Novo, meu Deus!

A cada ano, penso que não vou resistir às Festas. Este ano, eu fujo, digo e repito, de outubro em diante. Acabo em casa sempre, por consideração aos “alguéns” da família.
Nos meus muitos anos novos passados bem, mais ou menos ou mal, conservava a ilusão de que tudo podia melhorar, tapeação vulgarizada por todos os meios e mídias. Não sou diferente agora, não me tornei mais realista, apesar de, sem dúvida, ter ficado um pouco mais temerosa com o longo caminho percorrido.
A cada dia de dezembro, o que presencio e compartilho é a repetição dos bons votos de e para pessoas, às vezes, quase desconhecidas: empregados do nosso prédio, minha empregada de mais de 15 anos de casa, motoristas de taxi, atendentes de lojas... Enfim, toda a gente quer para sí e para os seus um  Natal e um Ano-Novo “da pontinha”, como falava minha mãe. E fica muito grosseiro guardar os votos para sí mesmos. Hipocrisia, às vezes, ajuda.
            Meus primeiros festejos de passagem de ano não se chamavam ainda “réveillon”, termo de gente metida à besta com o uso de palavras estrangeiras, hoje vulgarizado. Minha família passava a meia-noite  rezando e iamos dormir, sob um ou outro barulho de fogos. Poucos e nunca confundidos com as balas delirantes, soltadas para o ar pelos bandidos de minha cidade atual. No dia seguinte, missa sem falta, nem que não tivéssemos pecado na véspera. A igreja do bairro era o centro das atrações de meu pai e ele nos forçava a segui-lo, pelo menos, no dia primeiro, mesmo depois de uma longa noite anterior.
            Muitos anos depois, lembro-me de fato inusitado: - Vamos jogar flores para Iemanjá! - disse meu irmão diplomata um belo dia, recém-chegado de alguma parte longinqua do mundo. E  nos enfiamos, os três irmãos, mar adentro, com flores em honra da Rainha do Mar, catolicismo posto de lado. Depois, sim, um bocado de festa pagã  para “distrair os miolos”, outra fala de minha mãe.
            Não teve resultado positivo algum a crença e o ato ignorados por minha gente. Acho que nossa fé estava alhures. A coisa ficou feia naquele Ano-Novo pós homenagem à Iemanjá: meu pai perdeu toda a sua fortuna. Tristeza familiar sem cura,  só houve um jeito: à hora da mudança de ano em novo dezembro, o filho homem saiu da sala correndo e deu descarga na privada. À meia-noite em ponto. Depois do espanto geral,  risos nervosos, cara cheia e pronto.
            A macumba na praia marcou meus primeiros anos de Rio de Janeiro, muito mais que fogos e multidão. Vi muita senhora elegante jogar flores brancas, vi muitos Pais e Mães de Santo a segurar mulheres em transe, logo à beira da arrebentação do mar de Copacabana, em rito estranho para católicos de verdade.
Além de proibirem o espetáculo de candomblé - certamente por cafona demais, não sei, e substituírem-no por palcos montados na praia para shows, tiveram que acabar com os fogos na areia, que meus filhos viam em mescla de medo e êxtase, para minha grande preocupação. Tudo na paz de Deus, um queimadinho ali, outro aqui, sem o aperto, o alvoroço e os turistas de agora. Morávamos logo ali, no Lido, a uma quadra da praia. Assim, seguíamos o fluxo da platéia, acho que todos bem cariocas, que afluíam aos montes pelas ruas laterais, um pouco bêbados talvez e muito cheios de energia. Um espetáculo bonito, sem grandes estardalhaços.
Depois, o que era receio transformou-se em realidade: os fogos fizeram vítimas sérias. Os organizadores iniciais foram despedidos pelo Sr. Prefeito, sem dó nem piedade. A prefeitura apelou para as balsas, de maior segurança, sem dúvida, mas sem a graça do ao vivo dos fogos de artifício, no céu bem próximo de nós.
            Filhos grandes seguiram cada qual seu jeito próprio de comemorar . Nós, os adultos, fazíamos um grupelho, para curtir a grande festa. A cidade cresceu em movimento constante, os turistas de outras partes do Brasil e alguns de fora começaram a desejar a luxúria e a confusão do famoso réveillon da Cidade Maravilhosa. Resultado: milhões de pessoas, em geral jovens ou ainda pessoas com forças para varar a noite em pé. Verdadeiro tumulto de show de rock na Copa cabana  do Rio de Janeiro.
Adeus, cidade mais civilizada, restou aos cariocas sair para resorts, casas de praia e campo ou mesmo lar de seus parentes do interior. E nós, como ficamos nessa noite de alegria obrigatória? Consolo da tevê a exibir as maravilhas da Passagem de ano em outras terras, Prosseco na mão, que champanhe está caríssima, e brindes, nem que seja a dois ou a três, no máximo, ao ano que chega. Sem choro de emoção, mas com alguma esperança.
As tragédias não vão acabar, mas quem sabe o Ano das Olimpíadas no nosso Rio de Janeiro não nos traga o alívio de alguns campeões nossos, amém. Vamos torcer! 
Maria Lindgren


Lento..., extrato de poema de Natercia Freire

" Estou no fundo ou estou nos cimos?
Estou morta ou estou a sonhar?
Tenho as mãos presas nos limos
ou molhadas de luar"


Boas-vindas

Minha gente querida
Agradeço muito a visita a meu vício mais atual de escrever.
Que gostem e me perdoem os errinhos. Sou uma velha novata.
Maria Lindgren