sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Rio de sol, de céu e mar

If I can stop one Heart from breaking
I shall not live in vain
If I can ease one Life from Aching
Or cool one Pain

Or help one fainting Robin
Unto his Nest again
I shal not live in Vain
(Emily Dickinson, Poem 919)


Rio de sol, de céu e mar...

Guerrilha urbana diária, eis o vivemos nesta cidade “ abençoada por Deus e bonita por natureza”. Todos os dias, balas se cruzam morro abaixo e morro acima, entram por acaso em casas de famílias e escolas, raspam ou ferem pernas, braços, abdômen e cabeças, aleijando ou ceifando vidas de inocentes. Moradores atônitos seguem sua rotina de correria, do ir e vir estancado, escondem-se atrás de carros parados, precária trincheira que não lhes dá proteção suficiente, como não o faziam as da chamada Guerra de 1914, testemunhadas no cinema. Ou tentam proteção em vãos de entrada de pequenas lojas comerciais, fáceis alvos para metralhadoras e outras armas que desconheço. Em geral, crianças os acompanham no pique-esconde do horror, pequenas vitimas cujo olhar a tevê nem sempre nos mostra, mas se adivinha esbugalhado, pelo não entendimento da situação, quando pequenos demais, ou pelo medo, quando um pouco maiores. Seu choro não se pode ouvir tal a barulheira. Os carros negros da polícia, sinistros como tanques de outras guerras, espalham mais ainda o terror, sem piedade. Os policiais procuram por em prática os ensinamentos recebidos por “sargentos” mais aptos, mais cruéis, que ganham pouco, mas se orgulham da farda e do ofício, ninguém entende porquê. Portam coletes à prova de bala que, por sinal, deveriam ser distribuídos pela comunidade como fazem os agentes de saúde com as camisinhas, ainda que morram muitos, tantos quanto os bandidos. Com honras de militar, suas famílias recebem bandeiras dobradas, ouvem o estourar dos tiros de homenagem e choram copiosamente. Os pais, tios e outros parentes dos leigos, que morrem por mero acidente de percurso, dão depoimento dramático na televisão, juram que seus mortos na flor da idade eram bons estudantes ou trabalhadores, enquanto a tevê lhes expõe as fotos, para nosso constrangimento impotente. Avós multiplicam-se para cuidar dos netos sem mãe, mais do que já o fazem devido à condição financeira precária da gente moça que tem que ganhar a vida. A luta dura horas de angústia, palpitação cardíaca, e sangue, sobretudo. Granadas não explodem, mas existem, como prova o material depois exposto pela polícia. Os casos da guerra urbana são quase sempre iguais. Um, no entanto, o do Morro dos Macacos, ocorrido há semanas, passará à história de 2009 como o auge da prova de inépcia das autoridades. O piloto era o único com roupa à prova de fogo, já seus companheiros... Acompanhamos abestalhados o helicóptero atingido e em queda seguida de explosão, cena de filmes de atrocidades, apelidados de “adrenalina máxima” para o espectador, que hoje vemos indiferentes, sem a emoção dos clássicos lança-chamas da Guerra de 40 ou da menina queimada da Guerra do Vietnam. A ousadia da bandidagem no Rio de Janeiro chega a seu limite.
Enquanto isso, a passeata Gay, em pleno Dia dos Mortos, para minha surpresa, se colore de fantasias, em carnaval fora de propósito. E se tinha que ser neste dia de respeito aos mortos, por que os gays que, diga-se de passagem, são de minha convivência sem nenhum preconceito, não saíram vestidos de negro, em protesto de milhares de cidadãos contra uma cidade que vive de eventos? E, para mal de meus pecados, lá estava nossa autoridade maior, em demonstração de que apoiar os gays, tornar o Rio o maior destino Gay do mundo, é mais importante do que acabar com o destino infausto de nossa cidade sitiada.

Maria Lindgren

_________________________________________________________________________

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Curiosidade mata

Curoiosidade mata
Mulheres de burca e chador intrigam, quando não revoltam qualquer espécime ocidental do sexo feminino. Em terra de biquínis sumários, carioca de praia e coração, Fernanda atraía-se pelas fotos de mulheres islâmicas, de vestimentas mais pudicas do que as de freira antiga do catolicismo. Talvez compelida pelo impulso de ajudá-las a se rebelar, como o haviam feito as feministas no século XIX. Ou por curiosidade, apenas. O que levaria essa gente a seguir os ditames machistas, no século XXI? Fanatismo religioso, covardia ou tara oculta?
O cinema no Brasil, sobretudo os que exibem filmes de diretores famosos não apenas americanos, vez por outra, contam histórias passadas no Afeganistão; a tevê, idem, além de pedaços do Irã, do Iraque e alhures, duas ou três mulheres vistas de relance ou abraçadas com crianças mortas, num mar de homens. E trajadas em negro, da cabeça aos pés. Cabelos ao vento, pecado! Rosto descoberto, dádiva de famílias menos zelosas dos deveres do Alcorão. Fernanda sabia de alguns locais, como Egito e Turquia, assim mesmo, na parte mais turística de ambos, no Cairo ou em Istambul. No Egito, testemunhara ela própria as tais damas sem rosto nenhum, que morrem a pedradas, por traidoras dos maridos. Estranho que se vestem de roupa azul claro, não sabe por quê.
Penetrar na vida de um lar islâmico, entender um pouco da subjugação das mulheres, tentar uma entrevista ou um bate-papo com alguma delas, se o chefão da família não se opusesse claro, seu desejo agudo.
Filha de médico, um dia, a oportunidade de ir a Istambul, a um encontro internacional. Teria que se virar sozinha: o pai participaria de todo o evento, durante vários dias. Malas prontas, a recomendação da mãe, conhecedora das paragens:
- Não deixe de levar um lenço para cobrir a cabeça, se não, você não entra em nenhuma mesquita. E é bom não provocar essa gente. Olha o Egito!
Recomendação legitima porque, na viagem ao Egito, levara uma cuspidela no cabelo solto, longo e farto, em pleno mercado de objetos típicos. Istambul, próxima à Europa, dizia-se, não podia ser tão rígida. Os homens, afirmava-se, haviam aprendido a conviver com as turistas ocidentais européias, amansando os fervores religiosos dominadores.
Logo à chegada, aeroporto coberto de turistas de primavera: olhos puxados, redondos, ovais, de cores variadas, cabelos louros, negros, ruivos, vestes absolutamente ocidentais. À esteira rolante, confusão multicultural, à hora de pegar as malas e se enfiar nos táxis para os hotéis. Quase ao pôr do sol, o longo caminho: uma bela paisagem de beira-rio, à direita, o famoso estreito de Bósforo, à esquerda, a linha do horizonte, delineada por monumentos medievais ou mais recentes e uma infinidade de cúpulas de mesquita, orgulhosas do brilho dourado ao sol da tardinha.
- Que maravilha de cidade!, pensou Fernanda, na festa dos de fora.
Era domingo. Ao longo do caminho, pessoas esparsas a flanar pelas calçadas largas, como na praia do Leblon. Muitos homens, em pares ou em grupos, uma ou outra mulher e criança mais crescidinha. Nenhum bebê. Para a moça, um choque o negror das roupas de ambos os sexos, com poucas exceções em beije caqui nas mulheres. E nada de cabelo à mostra, no sexo feminino. Pelo menos, um lenço bem grande à volta da cabeça e do pescoço. Verdade que a temperatura variava de oito graus a dezesseis: bastante fria, para nós, brasileiros da canícula carioca. De todo jeito, para eles, a primavera gostosa não justificava tamanha proteção contra o frio. Fernanda desviou o olhar das manchas escuras. Sentia aflição, pontada de angústia.
No hotel, a língua turca, tão incompreensível quanto a húngara. Graças a uma recepcionista mais esperta, o inglês soou-lhe alívio. No hall da entrada, não viu nativas, mas européias e brasileiras, acompanhadas de homens ou em grupos. Bem agasalhados para o vento constante de Istambul. O quarto acanhado incomodou-a: quase não se podia mover. O banheiro pequeno, de confortável tinha apenas a tal da bica no vaso sanitário, para lavar o que já se sabe, que inspirara um dos viajantes brasileiros a galhofar:
- Quando eu voltar, vou ter saudades das biquinhas de Istambul.
À noite, no restaurante do hotel, Fernanda e o pai, numa única mesa ocupada.
- Pai, como é que eu vou fazer amanhã? Está muito frio para andar na rua. Acho que me meto num ônibus de turismo, enquanto seu encontro durar.
O ônibus passeava lentamente pelos principais monumentos: Igreja Santa Sofia, Mesquita Azul, Gran Bazar... No bazar imenso, vendedores atacavam os turistas, pois, sem consumo, Istambul se ressente. Nos monumentos, visita atabalhoada. Empurrada, amarfanhada, na multidão que seguia uns tais guias de inglês fajuto, bandeirinha histérica ao ar, em comando do rebanho de tênis, jeans e casacos de inverno. Follow me! Here, here!
-. Chega! Desse jeito, não vou conhecer nada. Vou enfrentar o medo e sair a pé. Falo inglês, sei me virar.
No dia seguinte, seguiu a pé para o cybercafé mais próximo. Precisava mandar uns emails, provar o chá da terra, nos potes de vidro transparente, que coisa mais linda. O que mais desejava: conhecer uma turca legítima. No Café, o chá a queimar dedos, servido de má vontade por rapaz nada feio, por sinal. Sentou-se por minutos, até que bateu os olhos em uma moça de seus trinta anos, cabelos castanho com mechas douradas, compridos ao vento, e roupa de couro preto, bem masculina. Jeito de gay ou existencialista dos tempos de Sartre. Acompanhada de dois rapazes mais jovens, ela olhou para Fernanda e fez um esgar, uma espécie de sorriso desafiador, como quem diz - que tal? Num segundo, Fernanda sentada com eles a lhes perguntar:
– Do you speak English?
Sem receio de abordagem sexual, Fernando liderou o papo, perguntando muito do que queria saber sobre a vida das mulheres locais. São como as de Atenas, ironicamente apregoadas pelo nosso Chico Buarque - submissas. A grande maioria da classe média ou popular segue os ditames de Alá, isto é, dos pais e maridos. Não saem do lar, a não ser para levar os filhos à escola e para uma comprinha nos arredores da casa. Não é um confinamento tão completo como nos antigos haréns, mas quase. As de maiores posses, mulheres de empresários, banqueiros... conseguem andar sozinhas às compras, nas ruas de lojas de grife de alta classe. Mesmo assim, hora marcada para o retorno, motoristas a postos. De noite, saem os travestis estranhamente de peruca – havia lojas e lojas de perucas, coloridas até de roxo e azul, para espanto de Fernanda - ou putas prontas para a dança do ventre, nos poucos bares da cidade que se embebeda de chá e fuma o tal de narguilê.
A moça ousada perguntou à Fernanda se queria fazer parte da passeata do 1º de Maio. Iriam na ala das feministas que, pasmem, existem em Istambul. Claro que sim.
No feriado, Fernanda se ensarilhou toda, vestiu-se de camisa branca, calça jeans escura, casaco de couro preto, recém-comprado pelo pai, tênis branco das caminhadas no calçadão da sua praia do Rio de Janeiro. E lá se foi encontrar o grupo no final da praça, interditada, por numerosa força policial, ao tráfego e aos turistas.
Ninguém notou sua presença. Juntou-se ao grupo, aprendeu umas palavras de ordem no turco possível, sentiu-se triunfante. Era a revolução sexual turca, tão esperada. Emoção de fazer suar todo o corpo, seguiu em passeata por uma hora, gritos de guerra a reboarem na praça. Ao passar pelo Cybercafé, bem no final da praça Taxsim, um estranho carro com enorme mangueira rotativa, lançou sobre elas jatos poderosos de gás lacrimogêneo.
Em menos de dois minutos, tosse, garganta e olhos a arderem dizimaram a esperança das mulheres da Turquia. E de Fernanda, também.
_____________________________________________________________

A dignidade de uma cantora

A dignidade de uma cantora
Maria Lindgren
A arte deve seguir os ditames políticos de um país ou tem que denunciar os abusos de poder? Os melhores artistas são os que empregam sua arte para denunciar os governos ditatoriais, a sociedade corrupta, enfim, tudo o que de mal se passa na sociedade em que vivem ou na sociedade mundial? Discussão antiga, mas nunca esquecida.
Sei que há exemplos de escritores famosos que, alguma vez, foram favoráveis a ditadores, como o grande poeta anglo-americano Ezra Pound, que se deixou seduzir pelo fascismo, pasmem. Apesar de ser, sem dúvida, um dos maiores poetas modernos de todas as literaturas. E foi ele mesmo que escreveu contra todas as formas de opressão:
“Go meu song, to the lonely and unsatisfied/ Go also to the nerve-racked, go to the enslaved by convention/ Bear to them my contempt for their oppression...”
Em geral, tendo a preferir a Arte chamada pelos franceses de “engagée”, que não traduzo porque não gosto da palavra em português. Aceito, com certa relutância, os neutros da corrente “arte pela arte”, que não se manifestam e tratam de temas gerais. Desprezo, isso, sim, os que se aliam aos ditadores, como no caso da cineasta alemã Lenny Reinfestald, embora reconheça que seus documentários sobre o nazismo são de boa qualidade. Amiga de Hitler, não!
Até 1985, ano da reinstalação da democracia no Brasil, era impossível para mim não sentir a Arte,que combatia a ditadura e defendia os valores democráticos, ainda que não participasse diretamente de nenhum movimento político.
Daí que a cantora argentina Mercedes Sosa se tornou um emblema para as gerações que viveram sob o jugo da tirania. Conseguiu aliar seu canto ao movimento político chamado da esquerda, sem prejuízo de sua Arte. E sua morte, no domingo, 4 de outubro de 2009 – uma data para se lembrar – nos encheu os olhos de lágrimas de verdade.
Para nós, brasileiros, como para argentinos, chilenos, peruanos ou nicaragüenses, sua voz poderosa e firme “ brotando como um musguito en la piedra”, a entoar Gracias a la vida, apesar das tristezas infligidas por uma das piores ditaduras que foi a da Argentina dos militares e pelo exílio quando já não podia mais, seu corpo grande e seu rosto emoldurado por cabelos tão belos quanto seus sentimentos, não serão esquecidos jamais.
Sobretudo, Mercedes Sosa é importante para aqueles que sofreram de perto os absurdos ditatoriais, inclusive prisão, tortura, desaparecimento e morte, que precisavam gritar seus protestos e seu pranto, mas não podiam.
Nossos melhores compositores e cantores brasileiros, como Chico Buarque, Fagner, João Bosco e outros tinham que usar de subterfúgios para dizer, em palavras disfarçadas, o que lhes ia no coração, levando as pessoas a se conscientizarem de algum modo. A censura forte e burra dos meios de comunicação, felizmente não percebia o que Mercedes e seus amigos nos queriam transmitir em canto e versos, dando-nos de presente seus espetáculos inesquecíveis, pela energia que nos devolviam a cada vez, tornando-nos mais decididos, mais fortes, mais unidos para defender nossas convicções.
A América Latina, com sua língua diferente da nossa, mas comum a todos os demais países, entendeu a mensagem, se foi juntando, transformada em uma só pátria, de um só objetivo, deixando de lado os norte americanos e europeus, quiçá pela primeira vez.
O eco da voz da grande cantora Mercedes Sosa retumba em nossos corações libertários. Segue seu caminho, Mercedes! Deixe-nos suas canções e vá, com a certeza de que não a esqueceremos nunca.

_________________________________________________

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

As cinco amigas - homenagem à amizade verdadeira

As cinco amigas
Homenagem à amizade verdadeira
O resto do mundo não tem graça para as meninas eternas. São gente feia, desajeitada, bisonha. Elas, sim, têm do que se orgulhar, presente e passado.
Cinco moças de fino trato. Algumas mais abonadas, outras, menos. Nasceram e cresceram em bons bairros em casas confortáveis da cidade de porte médio. Sem se importar com o futuro, o que é próprio dos que não têm que catar e contar cada centavo.
Estudaram no mesmo afamado colégio, com professores de muita classe, especialistas em ver o mundo através da comunhão da arte com o intelecto. Bela formação, portanto.
De lá para cá, amizade intocável entre elas. Pelo menos, até hoje. Raridade, em nossa sociedade de superficialidade e valores tortos. Nenhuma fala mal da outra, por mais defeitos que tenham. Ou melhor, nem os percebem ou fingem não perceber, para não macular o entendimento recíproco. Às vezes, até curtem.
No colégio, formavam um grupo tão coeso que fazia xô! para os demais.
- Aqui, não, garota! Este lugar é de Ma-ri-lia. Guardei até agora.
Os professores percebiam e aquiesciam. Até deixavam livre a penúltima fila, para que as garotas se aboletassem à vontade. Estudiosas? Talvez pouco. Mas a vivacidade e o compartilhar de tudo, inclusive de conhecimentos, compensavam a preguiça de uma ou outra. Não porque colassem desbragadamente. Apenas uma palavrinha sussurrada aqui, outra, ali. Não precisavam de muito estudo, cabeças privilegiadas de verdade. Uma passada de olhos e eis pronta a lição.
Na folga da escola, entre quatro paredes, shows de arrebatar Hollywood. Ou, pelo menos, as mães e os tios mais avançados. Nada de papais: naquela época, os homens não davam muita bola para as filhas. Um tio postiço da mais sapeca ajudava a maquinar e efetivar loucuras de todas. O moço, bem mais velho do que elas, rejuvenescia, tornava-se da mesma idade, bolava letras sempre pornográficas, em estilo chanchada requintada. Palavrões e críticas exacerbadas por todo lado.
Riam-se muito com o resultado das elucubrações de tio, sobrinha e amigas, em palco improvisado no salão do apartamento maior. Roupas imitadas às coristas de musicais, tiradas do armário de uma das mães, apareciam aos montes. Improvisavam saias curtas e longas, shorts e calças pantalonas ou do tipo odalisca que, junto com as blusas de ombro caído ou apenas de sutiãs, mais echarpes longas e saltos altos: estavam prontas para a dança à la Lisa Minelli ou Ginger Rogers.
A letra das canções de musicais famosos da Broadway se modificavam em português chulo, para encaixar as rimas da pornografia. O ai, meu Deus de espanto de uma das espectadoras, uma parenta de repente convidada, valia mais que as gargalhadas costumeiras dos programas televisivos ou mesmo das comédias usuais. Chocar era preciso.
Seriam hippies, se tivessem idade à época e morassem nos States. Certamente, escolheriam acampamentos exclusivos, com entrada proibida aos idiotas.
Depois, casamentos, gravidez, separações, doenças, lonjura uma da outra. E a amizade intacta. E o desejo aceso de se encontrar em pequenas reuniões, de preferência, sem maridos. Não esmoreciam. Sempre se dá um jeito para o encontro de belos espíritos.
Lembro-me do dia em que se encontraram num pequeno e requintado restaurante do Rio de Janeiro, nos primeiros dias do mês, como habitual. Então com quarenta anos ou mais, usavam um pouco de maquiagem, para disfarçar incipientes pés de galinha, vestidos e saias de joelho de fora ou calças compridas de ver as curvas, blusinhas de talhe diferente, coladas ou não aos corpos, sapatos da moda; cabelos longos escovados ou encrespados, riso franco em ar de permanente excitação, chamavam a atenção dos freqüentadores homens e, por que não dizer, mulheres. Graciosas, sem dúvida. Do canto de uma das mesas, o rapaz charmoso ousou olhar demais para uma delas. Imediatamente, as demais protestaram:
- Você não vai querer estragar a noite com esse cara brega, né mesmo? Vai logo dando o fora nele!
E assim descartavam um possível namorado, quiçá um marido para as descasadas. Que importa! Eram muito mais interessantes os vinhos e risos frouxos do que ficar de papo com um desconhecido, que podia ser um bobão total. Nada como uma noitada só delas!
No dia em que completaram cinqüenta anos, a festa foi num clube grande. Convidaram pais ainda vivos, maridos, amantes, demais amigas menos íntimas, para a celebração mais que grandiosa porque de uma vida em comum.
A decoração do salão com bolas de soprar coloridas, amarradas em bandos ou expostas em guirlandas, lhes lembrava a criancice eterna. Embora a orquestra se esmerasse em rocks do tempo do Mick Jagger ou em canções eternas do cancioneiro meloso norte-americano. No centro da grande mesa ao fundo, um bolo bastante taludo, para suportar inúmeras bocas alcoolizadas, ávidas de doce. E o vinho, muito vinho tinto e branco estonteava a vida para melhor.
À meia-noite, interrompidas as danças com ou sem par, o estalar das bolas e o Parabéns pra você mais caloroso que os ouvidos haviam sofrido – sofrido, sim, porque aos berros e bem desafinado.
De repente, saída aos pulos do meio das moças aniversariantes, a espevitada mor pega um pedação de bolo e o lança bem no rosto da amiga mais próxima. Esta repete o desvario com outra, que o repete com mais uma, numa cadeia de cinco frenéticas. Não paravam de se divertir com boladas, em splash de bolo esfarelado e glacê branca.
Um após outro, os convidados se retiraram. Sem despedida, espantados com a cena inusitada de comédia dos Três Patetas ou outros filmes pseudo-engraçados de hoje. Maridos mudos abandonavam as respectivas, alguns pensando em broncas em casa. Pais, mães, amigas lamentavam o comportamento que jamais lhes fora ensinado, meninas de colégio particular caro e bons modos cultivados na família.
E elas, ao contrário, felizes da vida, comentavam aos berros:
- Graças a Deus, foram todos embora. Gente careta não dá. Vamos nos lamber e nos deliciar até o amanhecer. Viva nós!
Hoje é dia de jantar das cinco. Parece que as vejo. Escolheram o restaurante mais vazio da Barra da Tijuca, para não serem interrompidas por Dá licença, a toda hora, e para maior liberdade. Vêm as do outro lado da Bahia de Guanabara e as do Rio de Janeiro. Largam trabalho, marido, filhos, para o grande encontro mensal. Secadores em punho trabalham os cabelos fartos, sem preocupação com a menopausa, que não demora a chegar. Roupas e sapatos de bossa ajustam-se aos corpos das endiabradas. Gordinhas, esbeltas e magrelas a postos, na melhor fashion exclusiva. Estômagos roncam, mas nem bolachinha ingerem, para não atrapalhar a expectativa gustativa. Água gelada e olhe lá, até o primeiro manjar e gole de vinho, tudo recomendado pela amiga especialista em pratos de mestre.
A postos, assentam-se em torno da mesa redonda, arrumada para festejo solene. Beijos distribuídos entre risadas, pedem a primeira garrafa de vinho tinto português, em homenagem ao avô de uma delas. Tudo comme il faut.
A luz do restaurante é um tanto fraca, como convém aos clientes de meia-idade ou quase. Recusando-se a colocar óculos de grau, a mais vaidosa entre vaidosas não enxerga bem o nome do vinho. Pede ao garçom que lhe dê um foco maior de luz. O moço prontamente obedece. De repente, um grito de horror:
- Minha nossa, um fio de cabelo branco do MEU cabelo acaba de cair no meu prato. Vou pra casa chorar. Acabou-se a festa!!!!!!
_________________________________________________________________.

Lento..., extrato de poema de Natercia Freire

" Estou no fundo ou estou nos cimos?
Estou morta ou estou a sonhar?
Tenho as mãos presas nos limos
ou molhadas de luar"


Boas-vindas

Minha gente querida
Agradeço muito a visita a meu vício mais atual de escrever.
Que gostem e me perdoem os errinhos. Sou uma velha novata.
Maria Lindgren