Curoiosidade mata
Mulheres de burca e chador intrigam, quando não revoltam qualquer espécime ocidental do sexo feminino. Em terra de biquínis sumários, carioca de praia e coração, Fernanda atraía-se pelas fotos de mulheres islâmicas, de vestimentas mais pudicas do que as de freira antiga do catolicismo. Talvez compelida pelo impulso de ajudá-las a se rebelar, como o haviam feito as feministas no século XIX. Ou por curiosidade, apenas. O que levaria essa gente a seguir os ditames machistas, no século XXI? Fanatismo religioso, covardia ou tara oculta?
O cinema no Brasil, sobretudo os que exibem filmes de diretores famosos não apenas americanos, vez por outra, contam histórias passadas no Afeganistão; a tevê, idem, além de pedaços do Irã, do Iraque e alhures, duas ou três mulheres vistas de relance ou abraçadas com crianças mortas, num mar de homens. E trajadas em negro, da cabeça aos pés. Cabelos ao vento, pecado! Rosto descoberto, dádiva de famílias menos zelosas dos deveres do Alcorão. Fernanda sabia de alguns locais, como Egito e Turquia, assim mesmo, na parte mais turística de ambos, no Cairo ou em Istambul. No Egito, testemunhara ela própria as tais damas sem rosto nenhum, que morrem a pedradas, por traidoras dos maridos. Estranho que se vestem de roupa azul claro, não sabe por quê.
Penetrar na vida de um lar islâmico, entender um pouco da subjugação das mulheres, tentar uma entrevista ou um bate-papo com alguma delas, se o chefão da família não se opusesse claro, seu desejo agudo.
Filha de médico, um dia, a oportunidade de ir a Istambul, a um encontro internacional. Teria que se virar sozinha: o pai participaria de todo o evento, durante vários dias. Malas prontas, a recomendação da mãe, conhecedora das paragens:
- Não deixe de levar um lenço para cobrir a cabeça, se não, você não entra em nenhuma mesquita. E é bom não provocar essa gente. Olha o Egito!
Recomendação legitima porque, na viagem ao Egito, levara uma cuspidela no cabelo solto, longo e farto, em pleno mercado de objetos típicos. Istambul, próxima à Europa, dizia-se, não podia ser tão rígida. Os homens, afirmava-se, haviam aprendido a conviver com as turistas ocidentais européias, amansando os fervores religiosos dominadores.
Logo à chegada, aeroporto coberto de turistas de primavera: olhos puxados, redondos, ovais, de cores variadas, cabelos louros, negros, ruivos, vestes absolutamente ocidentais. À esteira rolante, confusão multicultural, à hora de pegar as malas e se enfiar nos táxis para os hotéis. Quase ao pôr do sol, o longo caminho: uma bela paisagem de beira-rio, à direita, o famoso estreito de Bósforo, à esquerda, a linha do horizonte, delineada por monumentos medievais ou mais recentes e uma infinidade de cúpulas de mesquita, orgulhosas do brilho dourado ao sol da tardinha.
- Que maravilha de cidade!, pensou Fernanda, na festa dos de fora.
Era domingo. Ao longo do caminho, pessoas esparsas a flanar pelas calçadas largas, como na praia do Leblon. Muitos homens, em pares ou em grupos, uma ou outra mulher e criança mais crescidinha. Nenhum bebê. Para a moça, um choque o negror das roupas de ambos os sexos, com poucas exceções em beije caqui nas mulheres. E nada de cabelo à mostra, no sexo feminino. Pelo menos, um lenço bem grande à volta da cabeça e do pescoço. Verdade que a temperatura variava de oito graus a dezesseis: bastante fria, para nós, brasileiros da canícula carioca. De todo jeito, para eles, a primavera gostosa não justificava tamanha proteção contra o frio. Fernanda desviou o olhar das manchas escuras. Sentia aflição, pontada de angústia.
No hotel, a língua turca, tão incompreensível quanto a húngara. Graças a uma recepcionista mais esperta, o inglês soou-lhe alívio. No hall da entrada, não viu nativas, mas européias e brasileiras, acompanhadas de homens ou em grupos. Bem agasalhados para o vento constante de Istambul. O quarto acanhado incomodou-a: quase não se podia mover. O banheiro pequeno, de confortável tinha apenas a tal da bica no vaso sanitário, para lavar o que já se sabe, que inspirara um dos viajantes brasileiros a galhofar:
- Quando eu voltar, vou ter saudades das biquinhas de Istambul.
À noite, no restaurante do hotel, Fernanda e o pai, numa única mesa ocupada.
- Pai, como é que eu vou fazer amanhã? Está muito frio para andar na rua. Acho que me meto num ônibus de turismo, enquanto seu encontro durar.
O ônibus passeava lentamente pelos principais monumentos: Igreja Santa Sofia, Mesquita Azul, Gran Bazar... No bazar imenso, vendedores atacavam os turistas, pois, sem consumo, Istambul se ressente. Nos monumentos, visita atabalhoada. Empurrada, amarfanhada, na multidão que seguia uns tais guias de inglês fajuto, bandeirinha histérica ao ar, em comando do rebanho de tênis, jeans e casacos de inverno. Follow me! Here, here!
-. Chega! Desse jeito, não vou conhecer nada. Vou enfrentar o medo e sair a pé. Falo inglês, sei me virar.
No dia seguinte, seguiu a pé para o cybercafé mais próximo. Precisava mandar uns emails, provar o chá da terra, nos potes de vidro transparente, que coisa mais linda. O que mais desejava: conhecer uma turca legítima. No Café, o chá a queimar dedos, servido de má vontade por rapaz nada feio, por sinal. Sentou-se por minutos, até que bateu os olhos em uma moça de seus trinta anos, cabelos castanho com mechas douradas, compridos ao vento, e roupa de couro preto, bem masculina. Jeito de gay ou existencialista dos tempos de Sartre. Acompanhada de dois rapazes mais jovens, ela olhou para Fernanda e fez um esgar, uma espécie de sorriso desafiador, como quem diz - que tal? Num segundo, Fernanda sentada com eles a lhes perguntar:
– Do you speak English?
Sem receio de abordagem sexual, Fernando liderou o papo, perguntando muito do que queria saber sobre a vida das mulheres locais. São como as de Atenas, ironicamente apregoadas pelo nosso Chico Buarque - submissas. A grande maioria da classe média ou popular segue os ditames de Alá, isto é, dos pais e maridos. Não saem do lar, a não ser para levar os filhos à escola e para uma comprinha nos arredores da casa. Não é um confinamento tão completo como nos antigos haréns, mas quase. As de maiores posses, mulheres de empresários, banqueiros... conseguem andar sozinhas às compras, nas ruas de lojas de grife de alta classe. Mesmo assim, hora marcada para o retorno, motoristas a postos. De noite, saem os travestis estranhamente de peruca – havia lojas e lojas de perucas, coloridas até de roxo e azul, para espanto de Fernanda - ou putas prontas para a dança do ventre, nos poucos bares da cidade que se embebeda de chá e fuma o tal de narguilê.
A moça ousada perguntou à Fernanda se queria fazer parte da passeata do 1º de Maio. Iriam na ala das feministas que, pasmem, existem em Istambul. Claro que sim.
No feriado, Fernanda se ensarilhou toda, vestiu-se de camisa branca, calça jeans escura, casaco de couro preto, recém-comprado pelo pai, tênis branco das caminhadas no calçadão da sua praia do Rio de Janeiro. E lá se foi encontrar o grupo no final da praça, interditada, por numerosa força policial, ao tráfego e aos turistas.
Ninguém notou sua presença. Juntou-se ao grupo, aprendeu umas palavras de ordem no turco possível, sentiu-se triunfante. Era a revolução sexual turca, tão esperada. Emoção de fazer suar todo o corpo, seguiu em passeata por uma hora, gritos de guerra a reboarem na praça. Ao passar pelo Cybercafé, bem no final da praça Taxsim, um estranho carro com enorme mangueira rotativa, lançou sobre elas jatos poderosos de gás lacrimogêneo.
Em menos de dois minutos, tosse, garganta e olhos a arderem dizimaram a esperança das mulheres da Turquia. E de Fernanda, também.
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quarta-feira, 7 de outubro de 2009
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Lento..., extrato de poema de Natercia Freire
" Estou no fundo ou estou nos cimos?
Estou morta ou estou a sonhar?
Tenho as mãos presas nos limos
ou molhadas de luar"
Estou morta ou estou a sonhar?
Tenho as mãos presas nos limos
ou molhadas de luar"
Boas-vindas
Minha gente querida
Agradeço muito a visita a meu vício mais atual de escrever.
Que gostem e me perdoem os errinhos. Sou uma velha novata.
Maria Lindgren
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Maria Lindgren
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