Belas mortes
A morte tem sido retratada nas artes da pior maneira possível. Hora, um
cavalheiro de olhar maligno, joga xadrez com outro, nitidamente para o derrotar
e matar, no momento em que julgar adequado: Ingmar Bergman e seu cinema belo-terrível.
Outras vezes, uma espada enfiada em direção errada e lá se vai Polônio,
pai de Ofélia, um homem bom, no meio de tanto cafageste – Hamlet, de Shakespeare. Ou um veneno colocado em copo errado –
também no Hamlet, no teatro de
Shakespeare.
Ou em pinturas antigas e modernas. A Guernica,
de Picasso representa muito bem a violência da guerra na Espanha do início do
século XX, com os pedaços de gente a voar pelo espaço. Morte brutal, pois. Nem
precisa tanto. Basta assistir às notícias da Síria, do Líbano hoje, do
Afeganistão e do Iraque ontem, para ver morte por todo lado. Nas cidades
grandes, as guerras do tráfico e do trânsito aniquilam até mesmo crianças.
Mas, como é difícil ao ser humano aceitar a inevitável conclusão da vida!
Verdade é que o fim da vida é tabu para a maioria dos seres humanos, religiosos
ou não, salvo as exceções mais fanáticas,
que se sentem vivos de cabeça, tronco e membros e a morte não lhes passa
pela cabeça. Ou os homens-bombas, que terão Alá a recebe-los no paraíso –será?- novidade dos islamitas de hoje. E mesmo os tronchos de doença não querem sair
do que lhes é familiar para o total desconhecido. Preferem andar de cadeira de
rodas ou nunca sair de casa. Deixar este mundo por vontade própria somente os
deprimidos sem cura.
Claro que há os heroís verdadeiros que se arriscam a morrer para salvar
os outros. Vide os bombeiros, que fazem disto profissão, que horror!
Dentre as mortes que viví, a do meu tio mais bonito foi uma das mais
terríveis: atropelado, quando saía de uma festa, aos cinquenta anos. A da amiga
muito próxima, que me deixou uma trava eterna na garganta, assolada por câncer
generalizado, em uma semana de descoberta. Barra pesadíssima.
Conheci uma única pessoa que, cansado de sofrer ou por acreditar num Deus
à sua espera, disse, de repente, aos que lhe cercavam a cama de moribundo
sofredor, já com mais de setenta anos: - Chega! Fechou os olhos, decidiu recebr
a temida e pronto!
Há, no entanto, um jeito de morrer que eu trato de nunca esquecer, por
suave e merecido: o de minha mãe. O neto andava adoentado e a visitava todos os
dias, sem falta. Precisava de seu carinho mais que de comida ou medicamento. Ao
rapaz não lhe importavam a quase cegueira, a mudez de pequenos gemidos, sem
palavra articulada, a pele ressecada e flácida, o ligeiro tremor das mãos.
Sentava-se a seu lado no sofá da sala acanhada, ele grandalhão bonito;
ela, idosa encarquilhada de oitenta e
nove anos, ainda com raros resquícios da beleza de outrora: as pernas, por
exemplo.
A televisão com qualquer
imbecilidade era prêmio, porque pretexto para o casal passar horas e horas de
mãos dadas, namorados platônicos, alimentados pelo amor recíproco. O enlevo só
se interrompia para a papinha dela e o sanduiche dele. Tarde de chuva de verão não os amedrontava,
ainda que o barulho forte dos trovões assustassem um pouco, fazendo mais
agarradas as mãos. Curavam-se ambos pelo carinho recíproco.
Uma bela tarde, a vovó do rapaz engoliu sem mastigar a papinha de sempre,
sentou-se no sofá com o neto, televisão ligada. Não se deram as mãos. De
repente, sem um ruído, ela pendeu a cabeça para o lado dele mais que o comum.
Apoiou-se no ombro do neto, estática. Era ela, a morte, não pressentida pelo
neto. Sem gemer, nem tremer, calma, minha mãe consentiu em deixar este mundo,
Como um passarinho. Ai, quem me dera!
Maria Lindgren
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