Papo de amigas
Sentaram-se para se
deliciar com um chá inglês verdadeiro. A
las cinco em punto de la tarde. Tinham que se regozijar do encontro e do
friinho do inverno carioca. Só mulheres. Nenhum homem para colorir (ou
atrapalhar?) o ambiente da casa de Lila, viúva há muitos anos.
Claro que ninguém
esperava grandes acepipes: a reunião se repetia pelo menos duas vezes ao ano.
No verão, ar condicionado a toda e nada de chá. Refrigerantes Zero e migas
argentinas. No máximo, um vinho branco bem geladinho alemão ou italiano ou um
tinto chileno. Nenhum trabalho caseiro para gente de certa idade, graças a
Deus!
Cinco mulheres avançadas
em anos e em cabeça, mais uma moçoila no “frescor” dos cinquentinha. Para ela e
a tia, o vinho bem escolhido.
Mal colocavam os bumbuns
nas poltronas e sofás, o papo rolava fluido, ameno, entremeado de sorrisos.
Nenhuma almejava exibir-se com brilhos de trajes ou inteligência. Doença, tema
proibido. Morte, nem se fala. Recordações, claro que muitas.
Nessa tarde de céu opaco
de invernículo, de repente, o primeiro episódio da conversa, desenrolada até o
final do encontro, entre goles de chá de aquecer gente do frio, quanto mais
brasileiras.
- Sabe da última do clínico
de D Rosalina? Quando ela lhe telefonou agoniada, com falta de ar e uma dor de
cabeça daquelas, ele lhe disse, voz decidida: - Não posso falar agora. Estou
brincando com minha filha mais nova. Vejam que loucura: D. Rosalina tem noventa
anos! Claro que precisava ouvir algum conselho médico, né mesmo? Talvez ser
levada a um pronto-socorro. Velho degringola a-toa, né mesmo?
Entre um abocanhar de
migas argentinas, de financiers e
outros docinhos típicos da cerimônia improvisada, as vozes se misturavam em
duplas, tercetos, quintetos... bem desafinados, por sinal. Todas queriam seu
quinhão de contadoras de casos. O que parece abundar em vida de gente vivida.
Difícil um senhor ou uma senhora sem assunto para expelir ou rememorar. Inda
mais em grupo de amigos do mesmo repertório.
Foi a vez de Lucia e sua
narrativa de certo interesse, logo transformada em ímpar pela unanimidade nada
burra das senhoras presentes. A voz lhe saiu meio titubeante, como era agora
seu jeito de falar, depois dos achaques da idade.
- Ouvi ontem na tevê que
um hospital do nosso estado – sempre em mau estado a saúde (rs) – descartou no
lixo um montão de fichas sigilosas dos pacientes. Olha só que falta de ética.
Bem que podiam tacar fogo nas fichas muito velhas ou salvar tudo em pen drive de computador bem atualizado.
- Muito pior que isso é
jogar no lixo material usado, excedente de cirurgia. Ainda tem hospital que não
dá a mínima para lixo hospitalar e o
joga em lixo comum. Em plena época de preocupaçãp ecológica – emendou Marcia,
viuva de médico.
Depois que os estômagos
sossegaram da náusea causada pela ação porca, Maria Alice resolveu amenizar a
conversa com sua fala excitada, cheia de vitalidade.
- Grave e pitoresco ao
mesmo tempo foi o que aconteceu com Isabel, aquela minha amiga que escreve para
a TV Globo, lembram? Ela estava em vésperas de aposentadoria e precisava de um
atestado de que tinha trabalhado num desses municípios da Baixada Fluminense. Se
mandou para lá, enfrentando trânsito e ruas de meter medo. O trânsito, porque
repleto de “barbeiros” imprudentes que sinalizavam para a direita e iam para a
esquerda, buzinavam a pedir passagem pela esquerda e corriam a passar a frente
à direita, sem nenhum respeito ao código. As ruas, porque cheias de prédios
caindo aos pedaços, sem plano arquitetural, sem a mínima conservação e raros passantes a pé, com cara de quem não
visita loja nem toma banho há muito tempo. Maria Alice, coitada, chegou lá esbudegada
de cansaço, para ouvir da atendente mal-humorada: - Não posso dar nenhum
documento antigo porque os cupins comeram o nosso artigo morto. Como se a fome
dos bichinhos danados do tempo de Kafka transformasse os preciosos papéis em
alimento amarelo e empoeirado.
Os risos discretos cresceram.
Meu Deus! Que coisa a burocracia brasileira! Somente os cupins aguentam e se
regalam com os papéis bolorentos. Tecnologia do século XX e XXI, para quê? O
serviço público brasileiro não muda de século, as repartições públicas tomadas
por onda gigantesca de papel e organizadas a lápis colorido, no máximo caneta pilot,
tudo feito a mão pelos secretários ou atendentes mais jeitosos, daqueles
crentes que são artistas.
E o péssimo gosto começa
nas escolas em decoração das salas do diretor, nas salas de aula, por toda
parte. Imagina o que nossas crianças não sofrem de má influência, sobretudo na escola pública! Não é a-toa que a
cultura brasileira de boa qualidade não tem incentivo. Em qualquer área,
prevalece o gosto duvidoso, herdado da educação infantil.
As duas professoras
aposentadas deram um suspiro de tristeza. Lembravam-se de suas escolas mal decoradas
por toda parte. Uma delas se lembrou de
ter pedido um documento qualquer para aposentadoria, que deveria estar num
arquivo do computador, e a resposta foi:
- Vai demorar uma semana.
O sistema está fora do ar e não anda nada bom. Até chegar um técnico e
consertar, leva tempo.
De repente, uma voz mais
exaltada, saída de algum canto ou do céu, quem sabe? - Gente, parem de
reclamar! Vocês todas tem mais de setenta anos e ainda se queixa? Em vez disso,
deviam ajoelhar e agradecer a papai do Céu a benção de serm idosas e ainda usufruirem
de boas companhias!
Silêncio. Seguido de mudança
de postura. As que ainda podiam, ajoelharam-se em plena sala, sem medo do
ridículo, as demais, continuaram sentadas. Mas todas, sem exceção, rezaram em
uníssono o Padre-Nosso mais grato que já se ouviu no Rio de Janeiro.
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Até breve, se Deus
quiser!
Maria Lindgren
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