sexta-feira, 7 de junho de 2013

Papo de amigas


 Papo de amigas
Sentaram-se para se deliciar com um chá inglês verdadeiro. A las cinco em punto de la tarde. Tinham que se regozijar do encontro e do friinho do inverno carioca. Só mulheres. Nenhum homem para colorir (ou atrapalhar?) o ambiente da casa de Lila, viúva há muitos anos.
Claro que ninguém esperava grandes acepipes: a reunião se repetia pelo menos duas vezes ao ano. No verão, ar condicionado a toda e nada de chá. Refrigerantes Zero e migas argentinas. No máximo, um vinho branco bem geladinho alemão ou italiano ou um tinto chileno. Nenhum trabalho caseiro para gente de certa idade, graças a Deus!
Cinco mulheres avançadas em anos e em cabeça, mais uma moçoila no “frescor” dos cinquentinha. Para ela e a tia, o vinho bem escolhido.
Mal colocavam os bumbuns nas poltronas e sofás, o papo rolava fluido, ameno, entremeado de sorrisos. Nenhuma almejava exibir-se com brilhos de trajes ou inteligência. Doença, tema proibido. Morte, nem se fala. Recordações, claro que muitas.
Nessa tarde de céu opaco de invernículo, de repente, o primeiro episódio da conversa, desenrolada até o final do encontro, entre goles de chá de aquecer gente do frio, quanto mais brasileiras.
- Sabe da última do clínico de D Rosalina? Quando ela lhe telefonou agoniada, com falta de ar e uma dor de cabeça daquelas, ele lhe disse, voz decidida: - Não posso falar agora. Estou brincando com minha filha mais nova. Vejam que loucura: D. Rosalina tem noventa anos! Claro que precisava ouvir algum conselho médico, né mesmo? Talvez ser levada a um pronto-socorro. Velho degringola a-toa, né mesmo?
Entre um abocanhar de migas argentinas, de financiers e outros docinhos típicos da cerimônia improvisada, as vozes se misturavam em duplas, tercetos, quintetos... bem desafinados, por sinal. Todas queriam seu quinhão de contadoras de casos. O que parece abundar em vida de gente vivida. Difícil um senhor ou uma senhora sem assunto para expelir ou rememorar. Inda mais em grupo de amigos do mesmo repertório.
Foi a vez de Lucia e sua narrativa de certo interesse, logo transformada em ímpar pela unanimidade nada burra das senhoras presentes. A voz lhe saiu meio titubeante, como era agora seu jeito de falar, depois dos achaques da idade.
- Ouvi ontem na tevê que um hospital do nosso estado – sempre em mau estado a saúde (rs) – descartou no lixo um montão de fichas sigilosas dos pacientes. Olha só que falta de ética. Bem que podiam tacar fogo nas fichas muito velhas ou salvar tudo em pen drive de computador bem atualizado.
- Muito pior que isso é jogar no lixo material usado, excedente de cirurgia. Ainda tem hospital que não dá a mínima para lixo hospitalar  e o joga em lixo comum. Em plena época de preocupaçãp ecológica – emendou Marcia, viuva de médico.
Depois que os estômagos sossegaram da náusea causada pela ação porca, Maria Alice resolveu amenizar a conversa com sua fala excitada, cheia de vitalidade.
- Grave e pitoresco ao mesmo tempo foi o que aconteceu com Isabel, aquela minha amiga que escreve para a TV Globo, lembram? Ela estava em vésperas de aposentadoria e precisava de um atestado de que tinha trabalhado num desses municípios da Baixada Fluminense. Se mandou para lá, enfrentando trânsito e ruas de meter medo. O trânsito, porque repleto de “barbeiros” imprudentes que sinalizavam para a direita e iam para a esquerda, buzinavam a pedir passagem pela esquerda e corriam a passar a frente à direita, sem nenhum respeito ao código. As ruas, porque cheias de prédios caindo aos pedaços, sem plano arquitetural, sem a mínima conservação  e raros passantes a pé, com cara de quem não visita loja nem toma banho há muito tempo. Maria Alice, coitada, chegou lá esbudegada de cansaço, para ouvir da atendente mal-humorada: - Não posso dar nenhum documento antigo porque os cupins comeram o nosso artigo morto. Como se a fome dos bichinhos danados do tempo de Kafka transformasse os preciosos papéis em alimento amarelo e empoeirado.
Os risos discretos cresceram. Meu Deus! Que coisa a burocracia brasileira! Somente os cupins aguentam e se regalam com os papéis bolorentos. Tecnologia do século XX e XXI, para quê? O serviço público brasileiro não muda de século, as repartições públicas tomadas por onda gigantesca de papel e organizadas a lápis colorido, no máximo caneta pilot, tudo feito a mão pelos secretários ou atendentes mais jeitosos, daqueles crentes que são artistas.
E o péssimo gosto começa nas escolas em decoração das salas do diretor, nas salas de aula, por toda parte. Imagina o que nossas crianças não sofrem de má influência,  sobretudo na escola pública! Não é a-toa que a cultura brasileira de boa qualidade não tem incentivo. Em qualquer área, prevalece o gosto duvidoso, herdado da educação infantil.
As duas professoras aposentadas deram um suspiro de tristeza. Lembravam-se de suas escolas mal decoradas por toda parte.  Uma delas se lembrou de ter pedido um documento qualquer para aposentadoria, que deveria estar num arquivo do computador, e a resposta foi:
- Vai demorar uma semana. O sistema está fora do ar e não anda nada bom. Até chegar um técnico e consertar, leva tempo.
De repente, uma voz mais exaltada, saída de algum canto ou do céu, quem sabe? - Gente, parem de reclamar! Vocês todas tem mais de setenta anos e ainda se queixa? Em vez disso, deviam ajoelhar e agradecer a papai do Céu a benção de serm idosas e ainda usufruirem de boas companhias!
Silêncio. Seguido de mudança de postura. As que ainda podiam, ajoelharam-se em plena sala, sem medo do ridículo, as demais, continuaram sentadas. Mas todas, sem exceção, rezaram em uníssono o Padre-Nosso mais grato que já se ouviu no Rio de Janeiro.
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Até breve, se Deus quiser!


Maria Lindgren

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Lento..., extrato de poema de Natercia Freire

" Estou no fundo ou estou nos cimos?
Estou morta ou estou a sonhar?
Tenho as mãos presas nos limos
ou molhadas de luar"


Boas-vindas

Minha gente querida
Agradeço muito a visita a meu vício mais atual de escrever.
Que gostem e me perdoem os errinhos. Sou uma velha novata.
Maria Lindgren