sexta-feira, 23 de maio de 2008

Niterói ah Niterói

Niterói, Ah! Niterói
Revisitada pela memória, Niterói ia surgindo sob variados matizes. No melhor deles, ela nascera. Num local pouco povoado e muito acolhedor. Abria-se às pessoas como a um recém-chegado querido ou filho pródigo da Bíblia.
Havia carros, ônibus e casas, é verdade. Arranha-céus, não. E o bonde bamboleava-se devagarinho, sobre os trilhos brilhantes das vias principais. Correria, por quê?! Aglomerado sufocante de edifícios e veículos, nem pensar!
Na idade escolar, as árvores da Alameda São Boaventura, no Fonseca, onde ela morava, sombreavam-na, misericordiosas, no trajeto ensolarado diário: casa-colégio-casa. Principalmente, em dias de cólicas menstruais da pré-adolescência.
A ponte sobre o canal, logo perto do colégio, era convite irrecusável aos meninos do Colégio Brasil, em fuga matreira de uma ou outra aula, a sentarem-se, mesmo que mal equilibrados, em gostosa paquera das garotas do Colégio Nossa Senhora das Mercês.
O bairro residencial abrigava empresários, comerciantes, imigrantes ricos da Colônia Portuguesa, mansões claramente imitadas às Quintas lusitanas de além-mar. Aos moradores mais modestos, cabiam casas confortáveis, de estilo indefinido. Como a do seu pai.
De pobre mesmo, só os serviçais domésticos. Ou, pelo menos, não se mostravam despudorados, afrontando a classe média, como hoje, enchendo-a de sentimentos de culpa jamais resolvidos. Eram humildes e tímidos. Advinham, em geral, do interior do estado, na esperança de escapar às agruras da vida rude da roça.
Em flagrante domínio à paisagem, logo à entrada do bairro, a Igreja de São Lourenço. Imponente e bem cuidada, às custas de óbulos fartos dos católicos de muita fé, exibia portas escancaradas. Sem medo ou discriminação. Diferia e muito das igrejas do Rio de Janeiro da atualidade, com semi-abertas portas laterais, meio-fechamento envergonhado ou fechadura de cadeado descarado, na porta principal, parecendo cercear o direito dos católicos de viver sua crença às claras. Contaminação do medo à violência, do qual nem o Senhor consegue escapar.
Num dos aposentos das recordações, ela se via menina-anjo, em vestes brancas acetinadas, com asas de penas tiradas às aves e tudo. Coroava a cabeça da imagem de Nossa Senhora ou de Jesus Cristo, compenetrada de seu papel, fiéis contritos ajoelhados a seus pés, bem do alto do altar-mor da Igreja de São Lourenço. Ave,ave, Maria; Christus vixit Cristus regnat...
No matiz mais forte dos doze ou treze anos, o passeio de fins de semana, na calçada da igreja. Prazeres deliciosamente pecaminosos. Garotas marotas saracoteando rente ao muro, risadinhas de malícia e dengo; rapazes quase meninos, em toda a extensão da calçada, tomando coragem para o abordar final, quase sempre abortado. De vez em quando, um entrecruzar de olhares eloqüentes, um sorrir de promessa pagã, raramente cumprida.
“ Engraçado!- ela pensou - Na parte de trás do muro da igreja os namoros mais avançados cobriam-se de beijos, abraços e carícias, nunca imaginados pelos puritanos. Ninguém perturbava os jovens casais. Nem os padres, nem as carolas, nem os nossos pais tão durões.”
A mãe dela, carioca convicta, não se conformava com a moradia no bairro de comércio rudimentar e poucos atrativos. Lutava para sair "do buraco" em que o marido a enfiara. Sonhava, pelo menos, a Praia de Icarai. Queria, a todo custo, recuperar o Rio de Janeiro de sua mocidade divertida. Nem que fosse através da bela paisagem avistada da orla marítima.
- Vivo encafuada nesse Fonseca. Em Niterói, minha filha, só se salva mesmo a vista do Rio –, resmungava, em flagrante desdém. - Por isso é que eu quero morar em Icaraí. Pelo menos, mato, de longe, as saudades da minha terra.
Ignorante do Rio de Janeiro modificado pelos tempos modernos, a mãe suspirava fundo, olhos úmidos, contaminando a filha. Imbuída da busca do paraíso praiano, a adolescente tratou de arrumar namorado do bairro aspirado. Passou borracha nos moços do Fonseca. Reservou-se para os queimados de sol das areias encantadas.
Teve sorte. Casou-se com um rapaz de boa família e morador de rua bem na praia. E em cerimônia religiosa. Pompa e circunstância, na igreja da moda. O máximo! A notícia, com foto e comentários elogiosos, na coluna social do melhor jornal da cidade.
O casal se juntou, no auge do amor, num apartamento de cômodos pequenos, sala e dois quartos, no último andar de um edifício pequeno. Não tinha elevador, não ficava exatamente na praia. Servia, porém, ao casal recém-casado e apaixonado. No verde aprazível do Campo de São Bento, deram início à nova família. Nascera a filha.
Muito mais tarde, com mais um filho, no apartamento de quatro quartos espaçosos, no último andar de um edifício elegante, na praia, com playground, elevador e sol ardente... separaram-se.
A cidade, de matizes cinzentos, abandonada e fedorenta, afinava-se ao tom melancólico da moça sem parceiro, com dois filhos a criar.
Cada vez que se forçava a espairecer a cabeça estonteada e saía de casa a passeio, a moça era obrigada a utilizar seus dotes acrobáticos e pular por cima de esgotos de água imunda, explodido dos bueiros, estagnada junto ao meio-fio das calçadas. Um tour de force atravessar as ruas de um dos bairros mais finos de Niterói!
Não era somente sujeira e fedor. Nas vias de acesso mais importantes, crateras no asfalto nunca renovado. Em todos os lares, a presença, sem nostalgia, de lampião a gás ou querosene, denunciando o colapso freqüente da energia elétrica. Em pleno verão de corpos melados de suor, cadê a bendita água? Banho tapeado de balde. Século XIX.
Apesar disso, Niterói se expandia em moradores e lojas comerciais. A cidade fazia por acompanhar a modernização. Enchia-se de grandes e confortáveis edificações.
A infra-estrutura da cidade é que não casava com o boom visível. Nem facilitava à moça o casar-se de novo. Arrumar segundo marido na Niterói dos anos 70, tarefa árdua, quase impossível.
Somente as amizades a prendiam à terra fluminense, em nó a cada dia mais frouxo. Transbordando alma e coração, os amigos e amigas não mediam esforços para suprir-lhe as carências. Amparavam-lhe as tonteiras da dor, distraíam-lhe os filhos sem pai, mitigavam-lhe o sofrer do fim de uma união, antes eternizada pela benção religiosa e paterna.
- Pensa bem no que fizeste, filha. Casar é para sempre!-, afirmava-lhe o pai, temeroso da possibilidade de um novo enlace.
Ecoando pelo vácuo da casa sem homem, a frase surtiu efeito: empurrou-a para o Rio de Janeiro, tão logo arrumou comprador para o apartamento. Cidade nova, sorte nova.
Desapontamento. A gente carioca, afamada pela simpatia, decantada pelos prolíferos elogios maternos, não se lhe apresentara com um “muito prazer” amigável. Não eram poucas as chacotas a respeito de sua cidade de origem, desrespeitada e desprezada pelos moradores esnobes do Rio de Janeiro.
- Terra onde urubu voa de costas, dizia Stanislau Ponte-Preta, cronista famoso do Rio. - Cidade-Sorriso Desdentado - exclamavam conhecidos maldosos e metidos à besta.
Depois, vieram os amigos cariocas ou acariocados, por serem de outros Estados. Costurou-os a ponto fino, com obsessão de bordadeira. Foi se tornando, sem o perceber, uma carioca quase autêntica. Aos poucos, perdia Niterói. Atravessar a Baía de Guanabara, de lancha ou pela Ponte, ontem uma tarefa rotineira, que sacrifício!
É verdade que as parcas posses não lhe permitiam o conforto de um carro. Morava em Copacabana, após o divórcio. Seria obrigada a usar ônibus ou carona de automóvel, pela Ponte Rio-Niterói, uma vez que, péssima nadadora, só então de deu conta da possibilidade de naufrágios das lanchas, que faziam a travessia dos passageiros na Baía de Guanabara.
Passados mais de vinte anos sem viver Niterói, convite irrecusável de primos da terra chegou-lhe de surpresa. Decidiu-se por vencer a preguiça e a covardia. Aceitou. Aprontou-se cuidadosamente para a visita, corpo e coração em tremedeira e batimentos incontroláveis. Desde o caminho da Ponte, no carro dos primos gentis.
Logo à entrada da cidade, estranhamento! O carro deslizava em ruas bem pavimentadas, o branco da pintura fresca realçando-lhes os contornos. Setas bem visíveis evitavam erros de direção. Sinais de trânsito, comandados por maestro invisível e coordenado, abriam-se e fechavam-se, em compasso bem controlado.
Os anfitriões, no afã de mostrar à prima a profilaxia da Cidade-Sorriso, de dentes bem obturados, escolheram, zelosos, o caminho a tomar: um tour pelo Centro da cidade, em direção à Praia das Flechas; depois, à Praia de Icaraí, nosso destino final.
Atraentes matizes renovados. O velho teatro, outrora jogado às traças, restaurado e engalanado, anunciava balés, performances musicais e teatrais. Demonstração inequívoca de apreço pela cultura. A rua principal alargara-se em beira-mar esmerado. O ex-Palácio do Ingá, bem trajado, compatibilizara-se com sua nobre função de patrimônio histórico-cultural. E todo o Centro mudara para melhor. Até mesmo a Ponte das Barcas, como se chamava antigamente. Um bem surtido shopping center, rodoviária impecável para o povão, camelôs organizados, entre outras melhorias dignas.
- Gente! Deram um banho de loja geral em minha terra?!- deixou escapar, contente, em voz alta.
Logo após a curva da Pedra da Itapuca, a Praia de Icaraí despontou em matizes radiosos. A fala fácil de Miriam suspendeu-se, boquiaberta. A praia se exibia toda, donzela de corpo bem esculpido. Pessoas de idades variadas no passeio da manhã abençoada; carros discretos, em cadência civilizada, cordatos aos sinais de trânsito. E o sol suave do outono brasileiro, carícia pura na pele dos bebês.
Do playground do prédio, bem situado em ponto estratégico do Canto do Rio, óculos de grau a postos, a ex-niteroiense pode admirar, sem atropelos, o formato peculiar do moderno museu de Niemeyer. “Cálice de champanhe da casa de minha família”, observou, em silêncio. Zelando pela velha paisagem da orla marítima, o monumento parecia gritar:- Olha, minha gente! Aqui se faz cultura! E da boa! Ninguém precisa mais atravessar a Ponte para admirar a Arte, se divertir e encher a cabeça de belos devaneios!
E intactos, como no tempo da mãe, os contornos dos monumentos naturais da Cidade do Rio de Janeiro, oferecendo, gentis, à cidade-irmã, a vista esplendorosa. Lá... bem pertinho.
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Lento..., extrato de poema de Natercia Freire

" Estou no fundo ou estou nos cimos?
Estou morta ou estou a sonhar?
Tenho as mãos presas nos limos
ou molhadas de luar"


Boas-vindas

Minha gente querida
Agradeço muito a visita a meu vício mais atual de escrever.
Que gostem e me perdoem os errinhos. Sou uma velha novata.
Maria Lindgren