terça-feira, 27 de maio de 2008

Que saudade

Que saudade
a Manuel Puig
- Quem será o morador tão discreto do quarto andar? Gente de televisão, como a moradora de antes?-, pensava em voz alta a mulher.
Faltava ao homem o apreço à exibição, demandada pelo ofício televisivo. O vizinho do apartamento em frente ao deles raramente se deixava ver. A cabeça do casal se ocupava em curiosidade bisbilhoteira. Por outro lado, comum mortal não se esconderia tanto, o silêncio reinando absoluto no seu ambiente. Nenhuma fala em diapasão mais alto. Nenhuma festa escandalosa. Como as que costumam alucinar a vizinhança, impedindo o sono e as conversas íntimas. Som desmesurado a invadir os prédios, até pelas frestas das janelas, fechadas com mau-humor.
Tinha que ser um homem especial. Só era avistado eventualmente à noitinha, quando saía a pé pela rua, em sua vestimenta simples: calça, camisa e sandálias de couro. Ou de manhã, ao seguir o caminho da praia, barraca segura em abraço apertado, bermuda, camiseta, óculos escuros e sandálias havaianas.
Pobre não seria. Morava no melhor apartamento do prédio: uma cobertura duplex encantadora. Apesar dos quatro andares, de botar os bofes pela boca, a subir sem elevador, e mais uma escada interna, para exaurir de vez os músculos, em ginástica forçada.
Um dia, o mistério acabou. – Gente, é um grande escritor argentino, diz a vizinha. - - Ele ocupa o duplex do último andar.
Uma noite, o casal deliciava-se com um vinho italiano, enquanto ruminava, sem entusiasmo, uma pizza insossa, quando sentiu a janela do escritor se abrir. Não resistiu. Correram ambos, incontinente, à cozinha.
Lá estava ele. Debruçava-se, imóvel, sobre um jardim improvisado: uma espécie de varal, colocado da janela para fora, com plantas bem cuidadas. Não contendo a voz inoportuna, o marido ousou perguntar-lhe o que fazia tão pensativo à janela. Um forte acento espanhol, mesclado ao português, respondeu, num suspiro:
- Estoy esperando e desesperando!
Foi só. Nenhuma dica da pessoa esperada. Discrição respeitada pelo casal. Desse dia em diante, diálogo e encontro fáceis. Sobretudo, para a mulher que, professora de duas escolas, tinha intervalos de tempo entre uma escola e outra, e voltava à casa, antes de sair de novo.
Ao cair da tarde, tiro e queda: ela, estropiada e afônica de tantas aulas expositivas esgoeladas a alunos travessos, em época de pouco trabalho em grupo; ele, fiel a sua missão diária de visitar a mãe, moradora de um pequeno apartamento térreo, na mesma rua, logo adiante. Entre um “alô” e outro, o convite inesperado:
- Querés vir comigo à casa de mi madre? Vamos ver uns filmes antigos no vídeo. É uma pasión herdada de mi família.
Apaixonada, em grau similar, pelas velharias cinematográficas, ela, no entanto, titubeou. Tentada, não aceitou de imediato porque não havia chamado ou, ao menos, avisado, o marido, cinemaníaco igual. Coitado! Adorava filme antigo.
Na segunda vez, o Sim enfático. Marido esquecido. Pelo caminho, a conversa revelou um cidadão do mundo, um escritor de renome, no Brasil e alhures. Argentino de origem, amava o nosso país. Tinha vindo para ficar. Sobretudo, por causa da maldita crise da ditadura argentina, pior do que a brasileira. Lá, os militares pareciam mais ferozes e perseguiam os intelectuais de esquerda.
A mãe viera depois, devido a problemas familiares sérios, que não cabia esmiuçar. Ótimos oitenta anos, não perdia praia. Todas as manhãs, bem cedinho, dava uma nadada, enfrentava as ondas . Não queria enferrujar-se tão cedo.
A campainha soou e um rosto sereno, de cabelos grisalhos, em coque bem feito século XIX, emoldurou-se à portinhola do pequeno apartamento antigo. Um camafeu de verdade. A pobre moça pensou em seus próprios trajes e quase desistiu da visita, tamanha a vergonha do que vestia. Contraste total.
Mas em se tratando de uma dama e tanto, não importava. Ela a recepcionava, em sorriso acolhedor. Porte ereto de aristocrata, vestido de seda preta de mangas compridas e punhos abotoados por pequenas pérolas, comprimento de saia bem abaixo do joelho, decote em V, terminado em broche antigo de ouro e minúsculas pedras vermelhas, mal coberto por écharpe quase branca, de voile de seda pura. Meias finíssimas, da mesma cor da pele clara, e sapato preto fechado, de salto médio, completavam o manequim imponente, estranho ao ambiente à vontade, ou mesmo, esculhambado, dos cariocas da Zona Sul praiana do Rio de Janeiro.
Se era inverno ou verão, a senhora não suava, nem reclamava. Gente da alta. Uma lady diferente do filho, aclimatado ao jeitão informal do Rio, a não ser pela flagrante polidez de berço. Anfitrões e ambiente, um oásis, para uma professora recém-chegada do trabalho, impregnada da pouca beleza suburbana.
A moça foi conduzida à varandinha charmosa do apartamento. Sentaram-se as damas ao redor de mesinha redonda de vidro, em bonitas cadeiras de junco, de espaldar alto. O filho, bebida e petiscos vieram atrás. Nada menos do que licor requintado, daqueles de frade, em cálices de cristal finíssimo, água mineral em copos do mesmo padrão e biscoitos dos deuses.
Ambiente mágico. Sensações aguçadas, mentes e cores avivadas. A fantasia alimentava, sem esforço, as impressões da moça. A decoração da casa, de toque despretensioso na aparência, a postura da mãe e do filho, a conversa de sarau erudito contribuíam para o navegar por mundos idealizados. A simples idéia de estar ali, em meio ao requinte, tornava feliz a moça de criação modesta e pencas de sonhos irrealizados.
Num dos quartos, transformado em sala de minúsculo cinema de bolso, três caprichados aparelhos de televisão, cada qual com seus respectivos vídeos; cadeiras de braço em madeira e palhinha, arrumadas à moda de reduzida platéia. Não mais que três fileiras, de três cadeiras cada.
O filme da noite, um clássico do expressionismo alemão, uma obra-prima do cinema mudo. A convidada não conseguia concentrar-se no que a telinha lhe remetia, tal o deslumbramento com anfitriões e cenário.
Mundo onírico de sua juventude. E ninguém para a beliscar. Não despertaria, não fossem as vozes em indisfarçável sotaque castelhano, solicitanto-lhe, com respeito um tanto temeroso, a opinião sobre o filme. Claro que ela havia adorado, mesmo sem acompanha-lo direito.
Saiu, sonambulando pela rua, de braço dado com o novo parente de alma, adquirido por artimanha dos anjos. Despediram-se, comprometendo-se a repetir a dose, pelo menos, uma vez ao mês.
O casal mudou-se meses depois, para um apartamento mais distante do vizinho ilustre. Mesmo assim, continuaram os encontros da moça e do escritor, ao pôr-do-sol. Agora, mais esporádicos.
Irônico, em pseudo-indiscrição, o escritor lhe perguntara por que seu marido “carrasco” decidira aprisiona-la na torre tão alta de um castelo - a casa nova ficava no alto de uma ladeira íngreme. Ela entrou no jogo, respondeu com gracejos mentirosos, transformou o marido ciumento em guarda zeloso de penitenciária.
Uma tarde em que chegou mais cedo da escola, ouviu o interfone tocar e a voz terna, em português híbrido, a incitá-la:
- Princesa! Fuja de su castillo! Desça, princesa! Jogue as tranças, Rapunzel!
Riram muito, ela e o marido, dos epítetos. Ela confessou que não lhe caía nada mal tornar-se parte de uma corte, fosse a do marido, fosse a de um rei amigo. No fundo, preferia a princesa aprisionada e charmosa, à plebéia livre e desenxabida. Orgulhava-se..
Apesar da conversa fácil, o amigo e a moça nunca se permitiram contar intimidades. Destoavam do repertório, cada vez mais rico, dos colóquios. Foi assim à volta do amigo de viagem à Milão, onde estivera para lançamento de um de seus livros, em tradução italiana. A descrição, exagerada de detalhes, da cidade italiana requintadíííssima, riquíííssima, e dos freqüentadores sofisticados do coquetel, deixara a professora louca por aderir à comitiva do escritor, em uma próxima ocasião.
Na noite da estréia de uma peça, baseada em um dos livros do escritor mais em moda, outro extasiado momento. No instante em que ela e o marido apareceram à porta do teatro, o argentino brindou-a, lá do fundo do hall, com um “Princesa”, tão alto e bom som, que a transformou em celebridade de Festival de Cinema, olhos todos voltados para ela.
Num final de dia não mais cansativo do que os outros, uma certa gastura inexplicável. Pensou em suas costumeiras premonições. Sentiu receio de que algo ruim viesse a acontecer.
De fato, encontrou o amigo meio cabisbaixo. Faltava-lhe o rosto sorridente, o passo calmo e decidido das visitas à mãe. Antes que ela, inquieta, lhe perguntasse alguma coisa, esclareceu:
- Vamos mudar do Rio, Princesa. Fui assaltado ontem à noite. Por sorte, estou vivo. Tenho horror à violência. Estou apavorado de pensar em minha mãe, que mora sozinha. Não agüento!
- Ah! Meu Deus! Quando você parte?
- Semana que vem. Sem falta.
Enorme desapontamento. Como dispensar de sua vida o estrangeiro, compatriota por afinidade? Contava muitas pessoas amadas, perdidas pela vida. Mais esta?!
Pela primeira vez, os dois amigos, que jamais se haviam trocado toque mais íntimo, tentaram compensar a tristeza com um beijo na face e um abraço caloroso.
Os meses se passaram. Nada de notícia. O vácuo da ausência aguçava-se, a cada vez que a moça seguia pela rua do escritor ou passava pelo prédio da mãe.
Num encontro com a vizinha do apartamento ao lado daquele em que o escritor se escondia , as palavras que ela não queria ouvir:
- Sabe o nosso vizinho argentino? Morreu, coitado. Uma estupidez! Foi operar um cálculo de vesícula. Parecia coisa à-toa, mas pegou uma baita infecção no hospital e... foi-se.
A vida maldosa, sardônica, mais uma vez pregara-lhe uma peça sem sentido. O homem escapara do Rio violento para morrer, lá fora, de doença boba para os tempos modernos.
De novo, o sentimento de perda, ampliado mil vezes pela morte. Desnorteada, ela voltou ao ponto das tertúlias amistosas, agora irreais. Tentou visionar o amigo em seu retorno habitual da praia ou saindo em visita rotineira à mãe. Andou até o apartamento dos vídeos inesquecíveis. Tocou a campainha. Uma criança de seus sete anos abriu a porta. Sumira-se, na névoa da realidade, a senhora nobre. E junto com ela, a sutileza do amigo escritor, as sessões de cineminha privé, as emoções compartilhadas. Para sempre.
Em casa, desabou. Nunca mais Fritz Lang. Nunca mais Eisenstein. Nunca mais Princesa.
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Sessão Nostalgia traz recuerdos, muchos recuerdos. Dai...Manuel Puig

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Lento..., extrato de poema de Natercia Freire

" Estou no fundo ou estou nos cimos?
Estou morta ou estou a sonhar?
Tenho as mãos presas nos limos
ou molhadas de luar"


Boas-vindas

Minha gente querida
Agradeço muito a visita a meu vício mais atual de escrever.
Que gostem e me perdoem os errinhos. Sou uma velha novata.
Maria Lindgren